Será que estamos preparados para receber a notícia do dia da nossa morte?
Imagine a cena. Desenganado pelos médicos, sabendo que tem câncer por todo o corpo, você adquire doses letais de barbitúrico. Vai para casa e espera o tempo passar. Quando a dor ficar insuportável, antes de não conseguir mais ficar em pé, você reúne família e amigos, coloca as músicas preferidas e desfruta um bom jantar. Depois, toma o veneno que guarda há meses e dá adeus ao mundo.
Mortes assim já acontecem 3 vezes por mês no estado de Oregon, EUA. Desde 1997, uma pessoa em estado terminal pode receber instruções sobre como praticar suicídio quando a dor for insuportável. Esse caso é exemplo de um debate que cresce: a qualidade de vida do paciente e da família durante a morte. “Saber que a morte está próxima pode, sim, ser encarado como uma vantagem”, afirma o psicólogo hospitalar Cedric Nakasu. Se conseguir aceitar o prognóstico dos médicos e parar de lutar desesperadamente contra a morte, a pessoa pode aproveitar o tempo que lhe resta resolvendo problemas pendentes e se despedindo. Tendo uma morte serena. “O paciente tem chance de recordar, reviver e ressignificar seu passado. Esses 3 ‘erres’ definem uma boa morte”, diz Nakasu.
A ideia de qualidade de vida nos momentos finais também foi influenciada por outra constatação. Baseada em entrevistas com dezenas de pacientes terminais, a psiquiatra americana Elisabeth Kübler-Ross concluiu que a maioria deles sofre, além da dor física, com a separação da família, problemas financeiros, vergonha e até inveja de quem não está doente. “Num hospital, a pessoa deixa de ser ela mesma, de ter suas coisas, roupas e funções para se tornar apenas um paciente, tendo que obedecer regras, horários para dormir e comer que não são os seus”, diz Nakasu.
É por isso que muita gente prefere ficar em casa com a família a ganhar uns dias ao lado de outros doentes, equipamentos e enfermeiras. No Brasil, alguns estados já traçam leis nessa direção. Em São Paulo, o paciente terminal pode decidir quando e onde quer morrer. Uma lei sancionada pelo então governador Mário Covas em 1999 estabelece o direito de um doente recusar o prolongamento de sua agonia e optar pelo local da morte. O próprio Covas, que morreu de câncer, beneficiou-se dessa lei. O papa João Paulo 2º fez a mesma escolha. Silenciado pelo mal de Parkinson, morreu em seu apartamento no Palácio Apostólico.
Enquanto a retirada de aparelhos e o direito de arbitrar sobre a própria morte começam a ser considerados normais, a eutanásia permanece um tabu no Brasil. Não que ela não aconteça. “Muitos médicos, diante de pacientes terminais que sofrem dores atrozes, aplicam sedativos acima do limiar tóxico, sabendo que isso resultará em morte”, diz Almeida, da Unifesp. “Mas isso, é claro, nunca aparece nos registros.” Em alguns casos, a ação de matar o paciente produz menos sofrimento que o ato de não prestar socorro. O caso da americana Terri Schiavo é o melhor exemplo. Após os tribunais americanos decidirem pela retirada dos tubos de alimentação, Terri levou 13 dias para morrer de fome e de sede. “Seria bem mais ético aplicar uma injeção letal para reduzir não o sofrimento dela, que era incapaz de sentir, mas da família e dos médicos que a trataram por tanto tempo”, afirma Almeida.
Essa opinião toca num ponto crucial da cultura cristã: sempre preferimos omissões a ações. Em vez de aplicar uma injeção letal para acabar com a vida de um doente irreversível, achamos mais ético retirar seus aparelhos e deixar que ele siga seu curso “natural”. “Qual a base ética dessa distinção?”, pergunta o filósofo australiano Peter Singer, no livro Rethinking Life and Death (“Repensando a Vida e a Morte”, sem edição brasileira). “Tendo optado pela morte, devemos nos certificar de que ela se dê da melhor maneira possível.”
Publicado em 1994, o livro defende que nossos fundamentos éticos não estão adaptados ao mundo real. E que o valor sagrado atribuído a qualquer vida humana, um dos traços mais forte da nossa cultura, está se diluindo em favor de uma vida com menos sofrimento. Por exemplo: costumamos afirmar que a vida começa se não na concepção, algumas semanas depois dela. Mas podemos concordar com interromper essa vida para evitar o sofrimento de um feto anencéfalo e de sua mãe ou com a pesquisa de embriões se a pesquisa com células-tronco fizer aleijados andar.
Segundo Singer, esse jeito de pensar está fazendo parte das decisões diárias sem nos darmos conta. Em vez das regras tradicionais como “não matar” ou “crescei e multiplicai-vos”, médicos, doentes e familiares estão preferindo “responsabilize-se pelas conseqüências de seus atos” e “respeite o desejo de viver e morrer”. Ou seja: o caráter sagrado da vida pode estar ruindo. Se Singer estiver certo, discussões sobre o começo e o fim vão continuar. Mas ao menos será mais fácil entender por que vida e morte, as duas questões fundamentais do ser humano, estão causando tanta polêmica.
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